Comunicar o câncer é um desafio

Comunicar o câncer é um desafio

 

Há cinco anos, por esta época, eu estava terminando a internação pós-cirurgia e tinha um desafio imediato pela frente: comunicar ao mundo que eu havia operado um tumor na maxila e agora iria para o tratamento complementar, com radio e quimioterapia. Tinha de informar que agora eu era um paciente de câncer e, como tal, deveria concentrar todos os meus esforços em cuidar da doença, fazer a minha parte para obter a cura. Tinha de explicar o “chá de sumiço” que tomei, a minha ausência das redes sociais, onde estava bem ativo até recentemente.

Era um desafio imediato e enorme. Coisa muito delicada. Eu não estaria comunicando a minha condição de saúde somente aos meus parentes, amigos e pessoas que gostam de mim, mas também aos círculos sociais onde transito, aos prestadores de serviços que me atendem, e ao mercado de trabalho. Tinha de me explicar muito direitinho, para que não tivessem ideia errada de mim. Não me imaginassem pior do que eu já estava e me julgassem incapaz. Fora do jogo profissional, fragilizado, vulnerável… enfim, lascado.

Abri o notebook para escrever o comunicado e, para minha sorte, uma ideia interessante me veio à cabeça. Por alguma razão, talvez por que eu seja doido por astronáutica, me vieram as imagens do filme Alien – O Oitavo Passageiro (EUA-1979), um clássico da ficção científica em que os tripulantes de uma nave espacial lutam contra um bicho alienígena que haviam levado a bordo, ainda no ovo, e que se transformou num assassino impiedoso. A analogia me pareceu perfeita. Quem era eu naquele momento, senão uma nave tentando expulsar o alien que se alojou num dos compartimentos? Fui em frente na comparação e escrevi O Intruso, um post que calou fundo na audiência do Facebook, porque choveram likes e comentários. Ele fez o serviço necessário. Informou geral que eu tratava um câncer, mas estava vivo, ativo e criativo. Estava positivo e, logo mais, operante.

A questão de comunicar o câncer se colocou para mim desde o começo. Desde aquele hiato tensíssimo entre a coleta do material para a biópsia e o resultado. Dividi a angústia apenas com Marcia, minha companheira de vida e lutas, para não preocupar os filhos e os netos antes da hora. Quando a confirmação chegou, foi um esforço tremendo vencer o medo que eu sentia da doença, para transmitir tranquilidade, ânimo, confiança, positividade, tudo que os meus meninos precisavam ouvir. Mas venci. Foi suave para eles e soou como uma convocação familiar, um chamado à mobilização de todos para enfrentar o invasor. Recebi tanto amor e cuidados até o fim do tratamento que, tenho certeza, me energizaram muito para a luta.

Fico pensando no desafio que os médicos oncologistas enfrentam quase diariamente, de dizer a algum paciente que sim, infelizmente, o tumor é maligno e de lidar com as reações à notícia. O pasmo, o susto, o medo, a raiva, o inconformismo, o choro e sabe-se lá mais o que. Não deve ser mole esse momento. Mas os médicos são treinados para ele e têm apoio do hospital, caso tenham dificuldades em enfrentá-lo. Mas nós, pacientes, não fazemos esse treino. Temos de encarar “caubói” o diagnóstico, sem gelo, sem açúcar, sem adoçante moral, ainda que o profissional que nos atenda seja acolhedor e motivador, como geralmente ele é no A.C.Camargo. O câncer dá em nós, no nosso corpo, é assunto íntimo, inescapavelmente. A dimensão mais profunda dele, só nós, pacientes — cada um por si e todos, sem exceção — podemos experimentar e avaliar.

Mas o câncer não é assunto exclusivo do doente. É uma doença social, na medida em que vai afetar a família e os diversos círculos de relacionamento do paciente. Pode durar vários anos e envolver muita gente. A nossa responsabilidade é com todas elas. Primeiro a família, as pessoas mais amadas, mas também todas as outras. É para elas que precisamos ser cautelosos e hábeis em comunicar a doença e os passos no tratamento. Para não agravá-la aos olhos delas e, por esse desvio de ótica, não agravá-la em nós mesmos.

Gabriel Priolli

Confiança, sempre. Positividade, concentração mental, vontade de vencer. Disciplina nos procedimentos recomendados e na medicação prescrita. Calma nos momentos difíceis, paz para aceitar qualquer perspectiva. Cultivar esse conjunto de virtudes é o desafio monumental e cotidiano do paciente oncológico. Mas é isso ou isso, porque a alternativa é pior. O câncer ensina que é da fraqueza do nosso corpo, do que exista nele de mente e espírito, que tiramos a força moral para vencê-lo. Sorte a todos nós! Venceremos.

Sobre o autor

Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.

Fonte: A.C Camargo

 

Há cinco anos, por esta época, eu estava terminando a internação pós-cirurgia e tinha um desafio imediato pela frente: comunicar ao mundo que eu havia operado um tumor na maxila e agora iria para o tratamento complementar, com radio e quimioterapia. Tinha de informar que agora eu era um paciente de câncer e, como tal, deveria concentrar todos os meus esforços em cuidar da doença, fazer a minha parte para obter a cura. Tinha de explicar o “chá de sumiço” que tomei, a minha ausência das redes sociais, onde estava bem ativo até recentemente.

Era um desafio imediato e enorme. Coisa muito delicada. Eu não estaria comunicando a minha condição de saúde somente aos meus parentes, amigos e pessoas que gostam de mim, mas também aos círculos sociais onde transito, aos prestadores de serviços que me atendem, e ao mercado de trabalho. Tinha de me explicar muito direitinho, para que não tivessem ideia errada de mim. Não me imaginassem pior do que eu já estava e me julgassem incapaz. Fora do jogo profissional, fragilizado, vulnerável… enfim, lascado.

Abri o notebook para escrever o comunicado e, para minha sorte, uma ideia interessante me veio à cabeça. Por alguma razão, talvez por que eu seja doido por astronáutica, me vieram as imagens do filme Alien – O Oitavo Passageiro (EUA-1979), um clássico da ficção científica em que os tripulantes de uma nave espacial lutam contra um bicho alienígena que haviam levado a bordo, ainda no ovo, e que se transformou num assassino impiedoso. A analogia me pareceu perfeita. Quem era eu naquele momento, senão uma nave tentando expulsar o alien que se alojou num dos compartimentos? Fui em frente na comparação e escrevi O Intruso, um post que calou fundo na audiência do Facebook, porque choveram likes e comentários. Ele fez o serviço necessário. Informou geral que eu tratava um câncer, mas estava vivo, ativo e criativo. Estava positivo e, logo mais, operante.

A questão de comunicar o câncer se colocou para mim desde o começo. Desde aquele hiato tensíssimo entre a coleta do material para a biópsia e o resultado. Dividi a angústia apenas com Marcia, minha companheira de vida e lutas, para não preocupar os filhos e os netos antes da hora. Quando a confirmação chegou, foi um esforço tremendo vencer o medo que eu sentia da doença, para transmitir tranquilidade, ânimo, confiança, positividade, tudo que os meus meninos precisavam ouvir. Mas venci. Foi suave para eles e soou como uma convocação familiar, um chamado à mobilização de todos para enfrentar o invasor. Recebi tanto amor e cuidados até o fim do tratamento que, tenho certeza, me energizaram muito para a luta.

Fico pensando no desafio que os médicos oncologistas enfrentam quase diariamente, de dizer a algum paciente que sim, infelizmente, o tumor é maligno e de lidar com as reações à notícia. O pasmo, o susto, o medo, a raiva, o inconformismo, o choro e sabe-se lá mais o que. Não deve ser mole esse momento. Mas os médicos são treinados para ele e têm apoio do hospital, caso tenham dificuldades em enfrentá-lo. Mas nós, pacientes, não fazemos esse treino. Temos de encarar “caubói” o diagnóstico, sem gelo, sem açúcar, sem adoçante moral, ainda que o profissional que nos atenda seja acolhedor e motivador, como geralmente ele é no A.C.Camargo. O câncer dá em nós, no nosso corpo, é assunto íntimo, inescapavelmente. A dimensão mais profunda dele, só nós, pacientes — cada um por si e todos, sem exceção — podemos experimentar e avaliar.

Mas o câncer não é assunto exclusivo do doente. É uma doença social, na medida em que vai afetar a família e os diversos círculos de relacionamento do paciente. Pode durar vários anos e envolver muita gente. A nossa responsabilidade é com todas elas. Primeiro a família, as pessoas mais amadas, mas também todas as outras. É para elas que precisamos ser cautelosos e hábeis em comunicar a doença e os passos no tratamento. Para não agravá-la aos olhos delas e, por esse desvio de ótica, não agravá-la em nós mesmos.

Gabriel Priolli

Confiança, sempre. Positividade, concentração mental, vontade de vencer. Disciplina nos procedimentos recomendados e na medicação prescrita. Calma nos momentos difíceis, paz para aceitar qualquer perspectiva. Cultivar esse conjunto de virtudes é o desafio monumental e cotidiano do paciente oncológico. Mas é isso ou isso, porque a alternativa é pior. O câncer ensina que é da fraqueza do nosso corpo, do que exista nele de mente e espírito, que tiramos a força moral para vencê-lo. Sorte a todos nós! Venceremos.

Sobre o autor

Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.

Fonte: A.C Camargo