Existe câncer pior?

Existe câncer pior?

Todo câncer é ruim, não há dúvida. Essa talvez seja a única unanimidade, o único traço absolutamente comum entre todos os envolvidos com ele: pacientes, familiares e mesmo o pessoal médico, a turma oncologista inteira, que ganha a vida estudando, combatendo e cuidando das vítimas do dito cujo. Não tem refresco para ninguém nessa doença insidiosa, mutante, rebelde. Mas será que existe câncer pior do que os outros? Aquele campeão da maldade, supervilão, o bad guy da história? Faz sentido pensar nisso?

Eu acho que faz, por uma razão simples: todo mundo pensa. Todos os envolvidos e também quem está fora da bolha oncológica. Se todos pensamos, é assunto. E, se é assunto, deixa comigo que eu traço umas linhas a respeito, para estimular a reflexão a respeito. Dizem que fazer isso se chama filosofar e eu não tenho pretensão a tanto, operar na mais alta esfera do pensamento, a filosofia. Esta é uma coluna jornalística e quero apenas chacoalhar essa ideia de “câncer pior ou melhor”, que anda muito confortavelmente instalada nas nossas cabeças. Folgada demais.

Um câncer é pior do que os outros, em tese, quando ele é mais perigoso. Quando ele pode nos levar aonde não queremos ir, com mais probabilidade e rapidez do que os coleguinhas dele. É pior também quando está em lugar de difícil acesso, ou é mesmo inacessível, o que faz dele o primeirão da fila dos perigosos. O tratamento é uma luta mais desafiadora para os médicos e mais tensa para os pacientes e as famílias. Pelo critério de periculosidade, então, não resta dúvida de que alguns tipos de câncer são piores do que os outros.

Mas a gente sabe que, graças à ciência, ao avanço do conhecimento médico, o perigo ronda muito menos a vida do oncológico do que no passado. Quase 70% dos tumores têm cura atualmente, alguns deles têm 100%. Então se trata, cada vez mais, de uma doença crônica. Quando não pode ser curada, ela pode ser administrada e o paciente vai tocando a vida, cuidado por bons médicos, como os que temos aqui no A.C.Camargo. Então, vejamos. Por esse critério — da vivência com o câncer e todo incômodo que ele envolve — tem algum tipo que é pior?  

Acho que sim. Um câncer é pior quando, estatisticamente, ele é mais recidivo, parece que foi mas não foi, volta para atormentar. Esse é o tipo mais chato, mais incômodo. Porque, além do que ele possa fazer quando volta, no local que ele escolher, tem o momento desse retorno. E isso é uma espada na cabeça da gente. Cada exame de controle, na fase do seguimento, é uma angústia danada. Vou negativar ou positivar? Quem já está nesse momento da jornada sabe como é e, quem não está, vai saber. Então, doutores, por favor: nunca digam que o nosso câncer tem muita chance de voltar. Nem que seja verdade e que o Dr. Google desminta, aquele enxerido. Enrolem a gente, doutores. Mentiras sinceras interessam, nesse caso. Muito.

Um câncer é pior do que os outros, também, pelo grau de incômodo que ele causa no freguês. Aí, eu creio que a freguesia discutiria horas, argumentando que é o meu, é o meu, é o meu. Cada um sabe de si, ninguém pode julgar o que vai no corpo alheio. Mas, convenhamos, os tumores que deixam sequelas explícitas, notórias, são piores do que aqueles que não deixam, os escondidos. Ambos atormentam, ambos preocupam, mas no caso dos ocultos, eles são coisa nossa. Já os explícitos pertencem ao mundo. A doença está em nós e nos olhos de qualquer um que olhe para nós. Está em nossa condição íntima, nosso estado de saúde, e também na vida pública, na imagem que as pessoas fazem de nós, das nossas capacidades. É pior, não? Eu acho. Até porque é o meu caso.

Mas um câncer é pior do que os outros, muito pior mesmo, quando lidamos mal com ele. Não importa o tipo de tumor, onde ele apareceu, o tamanho que tem, para onde foi e se está dando um baile nos médicos e na gente. Quando não enfrentamos a doença com o que ela exige de nós — resignação, paciência, força de vontade e disciplina —, qualquer câncer é o pior do mundo. Além do estrago que ele faz, nós ajudamos a estragar o tratamento. Inconformar-se com o diagnóstico, culpar-se por ele, rebelar-se contra o tratamento, não fazer o que tem de ser feito, fazer o que não se deve, tudo isso torna o câncer mais complicado do que já é.

O pior câncer do mundo pode ser o nosso. O melhor também. É uma questão de escolha e você, que quer o melhor para a sua vida, vai saber escolher.

Sobre o autor

Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.

 

Fonte: A.C Camargo

Todo câncer é ruim, não há dúvida. Essa talvez seja a única unanimidade, o único traço absolutamente comum entre todos os envolvidos com ele: pacientes, familiares e mesmo o pessoal médico, a turma oncologista inteira, que ganha a vida estudando, combatendo e cuidando das vítimas do dito cujo. Não tem refresco para ninguém nessa doença insidiosa, mutante, rebelde. Mas será que existe câncer pior do que os outros? Aquele campeão da maldade, supervilão, o bad guy da história? Faz sentido pensar nisso?

Eu acho que faz, por uma razão simples: todo mundo pensa. Todos os envolvidos e também quem está fora da bolha oncológica. Se todos pensamos, é assunto. E, se é assunto, deixa comigo que eu traço umas linhas a respeito, para estimular a reflexão a respeito. Dizem que fazer isso se chama filosofar e eu não tenho pretensão a tanto, operar na mais alta esfera do pensamento, a filosofia. Esta é uma coluna jornalística e quero apenas chacoalhar essa ideia de “câncer pior ou melhor”, que anda muito confortavelmente instalada nas nossas cabeças. Folgada demais.

Um câncer é pior do que os outros, em tese, quando ele é mais perigoso. Quando ele pode nos levar aonde não queremos ir, com mais probabilidade e rapidez do que os coleguinhas dele. É pior também quando está em lugar de difícil acesso, ou é mesmo inacessível, o que faz dele o primeirão da fila dos perigosos. O tratamento é uma luta mais desafiadora para os médicos e mais tensa para os pacientes e as famílias. Pelo critério de periculosidade, então, não resta dúvida de que alguns tipos de câncer são piores do que os outros.

Mas a gente sabe que, graças à ciência, ao avanço do conhecimento médico, o perigo ronda muito menos a vida do oncológico do que no passado. Quase 70% dos tumores têm cura atualmente, alguns deles têm 100%. Então se trata, cada vez mais, de uma doença crônica. Quando não pode ser curada, ela pode ser administrada e o paciente vai tocando a vida, cuidado por bons médicos, como os que temos aqui no A.C.Camargo. Então, vejamos. Por esse critério — da vivência com o câncer e todo incômodo que ele envolve — tem algum tipo que é pior?  

Acho que sim. Um câncer é pior quando, estatisticamente, ele é mais recidivo, parece que foi mas não foi, volta para atormentar. Esse é o tipo mais chato, mais incômodo. Porque, além do que ele possa fazer quando volta, no local que ele escolher, tem o momento desse retorno. E isso é uma espada na cabeça da gente. Cada exame de controle, na fase do seguimento, é uma angústia danada. Vou negativar ou positivar? Quem já está nesse momento da jornada sabe como é e, quem não está, vai saber. Então, doutores, por favor: nunca digam que o nosso câncer tem muita chance de voltar. Nem que seja verdade e que o Dr. Google desminta, aquele enxerido. Enrolem a gente, doutores. Mentiras sinceras interessam, nesse caso. Muito.

Um câncer é pior do que os outros, também, pelo grau de incômodo que ele causa no freguês. Aí, eu creio que a freguesia discutiria horas, argumentando que é o meu, é o meu, é o meu. Cada um sabe de si, ninguém pode julgar o que vai no corpo alheio. Mas, convenhamos, os tumores que deixam sequelas explícitas, notórias, são piores do que aqueles que não deixam, os escondidos. Ambos atormentam, ambos preocupam, mas no caso dos ocultos, eles são coisa nossa. Já os explícitos pertencem ao mundo. A doença está em nós e nos olhos de qualquer um que olhe para nós. Está em nossa condição íntima, nosso estado de saúde, e também na vida pública, na imagem que as pessoas fazem de nós, das nossas capacidades. É pior, não? Eu acho. Até porque é o meu caso.

Mas um câncer é pior do que os outros, muito pior mesmo, quando lidamos mal com ele. Não importa o tipo de tumor, onde ele apareceu, o tamanho que tem, para onde foi e se está dando um baile nos médicos e na gente. Quando não enfrentamos a doença com o que ela exige de nós — resignação, paciência, força de vontade e disciplina —, qualquer câncer é o pior do mundo. Além do estrago que ele faz, nós ajudamos a estragar o tratamento. Inconformar-se com o diagnóstico, culpar-se por ele, rebelar-se contra o tratamento, não fazer o que tem de ser feito, fazer o que não se deve, tudo isso torna o câncer mais complicado do que já é.

O pior câncer do mundo pode ser o nosso. O melhor também. É uma questão de escolha e você, que quer o melhor para a sua vida, vai saber escolher.

Sobre o autor

Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.

 

Fonte: A.C Camargo