Leveza nos incômodos

Leveza nos incômodos

Acordo, tomo o remédio do jejum e pego o celular, para fazer hora nos 15 minutos recomendados pelo médico, até tomar o café da manhã. A primeira coisa que me surge é um tuíte de Preta Gil, onde ela aparece em roupa de baixo, com um acessório incomum na cintura. “Sim, eu uso bolsa de ileostomia”, explica no texto, “e não tenho vergonha de mostrar, pois essa bolsinha salvou minha vida e me deu a possibilidade de me restabelecer de uma cirurgia que retirou o tumor que eu tinha!!!”. 

Os três pontos de exclamação não deixam dúvida: ela mostrou mesmo, sem traço de vergonha, até orgulhosa, algo que a maioria dos pacientes na mesma situação esconde. Mas o que ela não pode esconder de si mesma, ela ou qualquer paciente oncológico, são os incômodos, pequenos, médios ou grandes, que a doença nos impõe. Ter câncer é ganhar alguns desses “companheiros” de jornada e a luta contra ele inclui aprender a conviver com os indesejados, mesmo depois que a gente consegue tirar o tumor do corpo. Podemos falar deles ou calar, podemos amaldiçoá-los ou até valorizá-los — como faz corretamente a Preta. Mas ignorar não dá. Muito menos, gostar.

O mais universal dos incômodos, que também é perpétuo, é a apreensão. A angústia da dúvida, nas muitas formas em que ela se apresenta. O que provocou esse câncer? Foi algo que eu fiz? O tratamento vai funcionar? Será que eu me curei? Vou ter recidiva? Essas questões, quando entram na cabeça, não saem nunca mais. Ficam ali gritando aos neurônios, ou quietinhas num canto, mas estão sempre presentes. A não ser, imagino, que a pessoa vá aprender meditação transcendental nas montanhas do Himalaia e volte de lá levitando, tão desprendida conseguiu ficar das aflições do espírito.

E as aflições da matéria? Os incômodos físicos? Tem de todo tipo, de todo tamanho, em cada etapa da jornada. As picadas de agulha, em qualquer exame de controle. Ir ao banheiro na internação, com acesso no braço, empurrando a haste. Tomar banho com o acesso. A dor da punção, para extrair o líquido de uma área inflamada. A limpeza do intestino para a colonoscopia. O calor da injeção de contraste, na tomografia. A barulheira da ressonância, que parece que nunca vai acabar. O estômago querendo sair pela boca de tanto enjôo, na quimioterapia. O sufoco de ficar preso numa máscara de silicone, na radioterapia de cabeça. É um catálogo de torturas que merece atenção do Tribunal Internacional de Direitos Humanos.

Eu brinco com esses incômodos, quando estou lá penando, para ter a compaixão e o carinho dos profissionais que me atendem. Em muitos casos, a maioria, eu nem precisaria. Eles têm plena noção do que estamos passando e foram treinados a nos confortar, com o maior acolhimento possível, durante o doloroso transe. Mas fazem isso todo dia, com um monte de gente, e é natural que acabem tendo uma postura mais técnica, mais distante do que desejaríamos. 

Então eu procuro logo quebrar o gelo, comentando trivialidades ou fazendo piada, para criar um elo de cumplicidade. Pequeno e efêmero que seja, ele vai ajudar muito naquele meu penar. Nunca encontrei resistência a esse método de aproximação. Ao contrário, o pessoal ri comigo e me conforta o melhor que pode. Tudo fica melhor quando a gente coopera para tornar leve o que é pesado.

Incômodos são incontornáveis no câncer e o melhor a fazer é encarar, com positividade. Porque eles fazem parte do tratamento. Então vamos deixar de choradeira, porque, do oncológico ou do sadio, “o que ela quer da gente é coragem”. 

Guimarães Rosa
“O correr da vida embrulha tudo. Esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta”.
Guimarães Rosa
Sobre o autor

Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.

 

Fonte: A.C Camargo

Acordo, tomo o remédio do jejum e pego o celular, para fazer hora nos 15 minutos recomendados pelo médico, até tomar o café da manhã. A primeira coisa que me surge é um tuíte de Preta Gil, onde ela aparece em roupa de baixo, com um acessório incomum na cintura. “Sim, eu uso bolsa de ileostomia”, explica no texto, “e não tenho vergonha de mostrar, pois essa bolsinha salvou minha vida e me deu a possibilidade de me restabelecer de uma cirurgia que retirou o tumor que eu tinha!!!”. 

Os três pontos de exclamação não deixam dúvida: ela mostrou mesmo, sem traço de vergonha, até orgulhosa, algo que a maioria dos pacientes na mesma situação esconde. Mas o que ela não pode esconder de si mesma, ela ou qualquer paciente oncológico, são os incômodos, pequenos, médios ou grandes, que a doença nos impõe. Ter câncer é ganhar alguns desses “companheiros” de jornada e a luta contra ele inclui aprender a conviver com os indesejados, mesmo depois que a gente consegue tirar o tumor do corpo. Podemos falar deles ou calar, podemos amaldiçoá-los ou até valorizá-los — como faz corretamente a Preta. Mas ignorar não dá. Muito menos, gostar.

O mais universal dos incômodos, que também é perpétuo, é a apreensão. A angústia da dúvida, nas muitas formas em que ela se apresenta. O que provocou esse câncer? Foi algo que eu fiz? O tratamento vai funcionar? Será que eu me curei? Vou ter recidiva? Essas questões, quando entram na cabeça, não saem nunca mais. Ficam ali gritando aos neurônios, ou quietinhas num canto, mas estão sempre presentes. A não ser, imagino, que a pessoa vá aprender meditação transcendental nas montanhas do Himalaia e volte de lá levitando, tão desprendida conseguiu ficar das aflições do espírito.

E as aflições da matéria? Os incômodos físicos? Tem de todo tipo, de todo tamanho, em cada etapa da jornada. As picadas de agulha, em qualquer exame de controle. Ir ao banheiro na internação, com acesso no braço, empurrando a haste. Tomar banho com o acesso. A dor da punção, para extrair o líquido de uma área inflamada. A limpeza do intestino para a colonoscopia. O calor da injeção de contraste, na tomografia. A barulheira da ressonância, que parece que nunca vai acabar. O estômago querendo sair pela boca de tanto enjôo, na quimioterapia. O sufoco de ficar preso numa máscara de silicone, na radioterapia de cabeça. É um catálogo de torturas que merece atenção do Tribunal Internacional de Direitos Humanos.

Eu brinco com esses incômodos, quando estou lá penando, para ter a compaixão e o carinho dos profissionais que me atendem. Em muitos casos, a maioria, eu nem precisaria. Eles têm plena noção do que estamos passando e foram treinados a nos confortar, com o maior acolhimento possível, durante o doloroso transe. Mas fazem isso todo dia, com um monte de gente, e é natural que acabem tendo uma postura mais técnica, mais distante do que desejaríamos. 

Então eu procuro logo quebrar o gelo, comentando trivialidades ou fazendo piada, para criar um elo de cumplicidade. Pequeno e efêmero que seja, ele vai ajudar muito naquele meu penar. Nunca encontrei resistência a esse método de aproximação. Ao contrário, o pessoal ri comigo e me conforta o melhor que pode. Tudo fica melhor quando a gente coopera para tornar leve o que é pesado.

Incômodos são incontornáveis no câncer e o melhor a fazer é encarar, com positividade. Porque eles fazem parte do tratamento. Então vamos deixar de choradeira, porque, do oncológico ou do sadio, “o que ela quer da gente é coragem”. 

Guimarães Rosa
“O correr da vida embrulha tudo. Esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta”.
Guimarães Rosa
Sobre o autor

Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.

 

Fonte: A.C Camargo