Microscópios de caça ao câncer
Que o câncer é um bandido, todo oncológico sabe. Ele aparece do nada para trapacear com o nosso organismo, sequestrar o nosso tempo, roubar a nossa tranquilidade. Isso quando não leva a saúde de vez. O mão-leve do câncer furta uma boa parte da vida que vivíamos, dos hábitos que tínhamos, das coisas que gostávamos. Até as coisas mais banais, como assobiar uma música amada ou sentir o vento no rosto, por exemplo, prazeres que as sequelas do câncer de cabeça e pescoço encerram para alguns, como eu.
Pois é, nós sabemos que o câncer é um bandido. Mas nem sempre percebemos que ele pode ou não ser um marginal. “Como assim?”, indagará você. “As duas coisas não são a mesma?”. Parecem, mas não são, direi eu. Não no complexo e maravilhoso mundo da oncologia, onde as células cancerígenas estão no tumor, com certeza, mas podem estar também nas proximidades dele. Podem persistir nas margens de uma área de segurança que os doutores estabelecem, quando extraem o bichão na cirurgia. Por isso mesmo, tão importante quanto capturar o bandido é saber se algum resto maligno dele se escondeu nas imediações. Se há um marginal oculto, a ser caçado.
Quem faz a perícia para identificar isso, na “cena do crime”, é o pessoal da Anatomia Patológica. São 19 médicos titulares e 20 residentes, que se distribuem por todos os doze centros de referência do A.C.Camargo. Raramente vemos um deles, mas acredite: eles nos enxergam muito mais a fundo do que nós mesmos podemos fazer. “A anatomia patológica é bem ampla”, diz a doutora Marina De Brot Andrade, com o seu delicioso sotaque mineiro. Ela me conta que a área se divide em muitas atividades. Tem a parte das autópsias, a patologia legal. Tem a citopatologia, que examina o corpo no nível das células. Tem a patologia genômica, que vai mais fundo ainda, ao plano molecular. Tem a gestão laboratorial, porque a maior parte dos patologistas trabalha em laboratórios e há vários processos para coordenar. E tem a patologia cirúrgica, essa que muitas vezes trabalha quando o paciente ainda está na mesa de operação.
“O mais comum nela é a avaliação de margem cirúrgica”, diz a Dra. Marina. “O cirurgião manda a peça completa, o tumor que extraiu, ou às vezes manda as margens dele, separadamente. O patologista faz a macroscopia ali na hora e diz se a margem está livre ou comprometida, se tem ou não a presença de células cancerígenas”. Esse exame leva 20 ou 30 minutos, enquanto estamos ali na mesa, apagados, tomando oxigênio geladinho. “Em alguns casos, fazemos a avaliação do diagnóstico mesmo, para determinar a extensão do procedimento que vai ser feito em seguida”, a especialista complementa. Ou seja: o patologista indica se a coisa vai ficar só na remoção do bandido ou se o doutor irá atrás também do marginal.
Uma parte do material retirado de alguns pacientes vai compor o acervo do “Biobanco” do A.C.Camargo, que é utilizado na pesquisa médica. “Ele armazena tecidos frescos, tanto de tumor como de tecido normal. São coletados frescos, mas depois são congelados. Plasma, DNA e RNA são os tipos de amostras armazenados”, explica a Dra. Marina, que coordenou a unidade por quatro anos. “O material vai para o Biobanco e fica congelado a –70º, ou –130º, se for no nitrogênio. Fica lá indefinidamente, para o estudo dos pesquisadores”.
Enquanto conversamos, na correria de um dia de trabalho normal dela, a Dra. Marina não deixa de olhar no microscópio que está em sua mesa, onde ela examina um pedaço de algum de nós. O laboratório é o seu mundo e eu pergunto se, no meio das amostras, ela consegue nos ver de verdade. Enxergar os humanos onde surgem aquelas células anômalas e que estão ansiosos por se livrarem delas. Será que consegue?
“Frequentemente sim, porque a gente sempre faz a correlação clínica, né?”, ela me diz. “A gente não olha uma lâmina solta no microscópio. Olha o sexo da pessoa, olha a idade. De repente, vê uma paciente muito jovem, com tumor de mulher idosa, pós-menopausa. Aí vai lá no prontuário dela para conhecer a sua história clínica e vê que ela acabou de ter uma filhinha. É uma paciente puérpera, amamentando e está com um câncer de mama agressivo. É sempre muito difícil quando se enfrenta esses diagnósticos. Principalmente de pacientes jovens, crianças ou que têm alguma particularidade na história de vida. Pacientes do SUS, que terão de tomar drogas muito caras, que a maioria dos convênios não quer cobrir e eles terão de lutar para obter.”
A doutora se comove ao dizer isso e me emociona também. É bom compartilhar humanidade, num assunto tão difícil. Melhor ainda é saber que, mesmo nos recônditos mais técnicos do nosso tratamento, no visor dos microscópios e nas lâminas de células, existem profissionais que nos olham com compaixão e vontade de ajudar. É a força da solidariedade, agindo pela nossa cura.
Fonte: A.C Camargo
Que o câncer é um bandido, todo oncológico sabe. Ele aparece do nada para trapacear com o nosso organismo, sequestrar o nosso tempo, roubar a nossa tranquilidade. Isso quando não leva a saúde de vez. O mão-leve do câncer furta uma boa parte da vida que vivíamos, dos hábitos que tínhamos, das coisas que gostávamos. Até as coisas mais banais, como assobiar uma música amada ou sentir o vento no rosto, por exemplo, prazeres que as sequelas do câncer de cabeça e pescoço encerram para alguns, como eu.
Pois é, nós sabemos que o câncer é um bandido. Mas nem sempre percebemos que ele pode ou não ser um marginal. “Como assim?”, indagará você. “As duas coisas não são a mesma?”. Parecem, mas não são, direi eu. Não no complexo e maravilhoso mundo da oncologia, onde as células cancerígenas estão no tumor, com certeza, mas podem estar também nas proximidades dele. Podem persistir nas margens de uma área de segurança que os doutores estabelecem, quando extraem o bichão na cirurgia. Por isso mesmo, tão importante quanto capturar o bandido é saber se algum resto maligno dele se escondeu nas imediações. Se há um marginal oculto, a ser caçado.
Quem faz a perícia para identificar isso, na “cena do crime”, é o pessoal da Anatomia Patológica. São 19 médicos titulares e 20 residentes, que se distribuem por todos os doze centros de referência do A.C.Camargo. Raramente vemos um deles, mas acredite: eles nos enxergam muito mais a fundo do que nós mesmos podemos fazer. “A anatomia patológica é bem ampla”, diz a doutora Marina De Brot Andrade, com o seu delicioso sotaque mineiro. Ela me conta que a área se divide em muitas atividades. Tem a parte das autópsias, a patologia legal. Tem a citopatologia, que examina o corpo no nível das células. Tem a patologia genômica, que vai mais fundo ainda, ao plano molecular. Tem a gestão laboratorial, porque a maior parte dos patologistas trabalha em laboratórios e há vários processos para coordenar. E tem a patologia cirúrgica, essa que muitas vezes trabalha quando o paciente ainda está na mesa de operação.
“O mais comum nela é a avaliação de margem cirúrgica”, diz a Dra. Marina. “O cirurgião manda a peça completa, o tumor que extraiu, ou às vezes manda as margens dele, separadamente. O patologista faz a macroscopia ali na hora e diz se a margem está livre ou comprometida, se tem ou não a presença de células cancerígenas”. Esse exame leva 20 ou 30 minutos, enquanto estamos ali na mesa, apagados, tomando oxigênio geladinho. “Em alguns casos, fazemos a avaliação do diagnóstico mesmo, para determinar a extensão do procedimento que vai ser feito em seguida”, a especialista complementa. Ou seja: o patologista indica se a coisa vai ficar só na remoção do bandido ou se o doutor irá atrás também do marginal.
Uma parte do material retirado de alguns pacientes vai compor o acervo do “Biobanco” do A.C.Camargo, que é utilizado na pesquisa médica. “Ele armazena tecidos frescos, tanto de tumor como de tecido normal. São coletados frescos, mas depois são congelados. Plasma, DNA e RNA são os tipos de amostras armazenados”, explica a Dra. Marina, que coordenou a unidade por quatro anos. “O material vai para o Biobanco e fica congelado a –70º, ou –130º, se for no nitrogênio. Fica lá indefinidamente, para o estudo dos pesquisadores”.
Enquanto conversamos, na correria de um dia de trabalho normal dela, a Dra. Marina não deixa de olhar no microscópio que está em sua mesa, onde ela examina um pedaço de algum de nós. O laboratório é o seu mundo e eu pergunto se, no meio das amostras, ela consegue nos ver de verdade. Enxergar os humanos onde surgem aquelas células anômalas e que estão ansiosos por se livrarem delas. Será que consegue?
“Frequentemente sim, porque a gente sempre faz a correlação clínica, né?”, ela me diz. “A gente não olha uma lâmina solta no microscópio. Olha o sexo da pessoa, olha a idade. De repente, vê uma paciente muito jovem, com tumor de mulher idosa, pós-menopausa. Aí vai lá no prontuário dela para conhecer a sua história clínica e vê que ela acabou de ter uma filhinha. É uma paciente puérpera, amamentando e está com um câncer de mama agressivo. É sempre muito difícil quando se enfrenta esses diagnósticos. Principalmente de pacientes jovens, crianças ou que têm alguma particularidade na história de vida. Pacientes do SUS, que terão de tomar drogas muito caras, que a maioria dos convênios não quer cobrir e eles terão de lutar para obter.”
A doutora se comove ao dizer isso e me emociona também. É bom compartilhar humanidade, num assunto tão difícil. Melhor ainda é saber que, mesmo nos recônditos mais técnicos do nosso tratamento, no visor dos microscópios e nas lâminas de células, existem profissionais que nos olham com compaixão e vontade de ajudar. É a força da solidariedade, agindo pela nossa cura.
Fonte: A.C Camargo