O cordão do transplante infantil
O jovem casal recebe o diagnóstico que ninguém quer ouvir. “Sua criança tem câncer, uma leucemia”. A reação da mãe é invariável. Com o volume abundante de conteúdo de saúde que circula hoje em todas as mídias, ela se informa em dois segundos e volta a quem lhe deu a notícia. “Posso doar a minha medula?”, pergunta angustiada, cheia de esperança e com enorme expectativa. “Faço o transplante hoje mesmo, se puder!”.
A cena é comum na Pediatria do A.C.Camargo. Tão logo as famílias recorrem ao hospital para investigar se a fraqueza anormal da sua criança pode vir de um câncer no sangue, elas vão consultar também o Dr. Google e encontram uma enormidade de informações sobre o assunto. Logo surge a solução que parece infalível: o transplante de medula. Existem dois tipos dele. O de células de uma medula óssea sadia para a que está doente, chamado transplante alogênico, em mediquês castiço. Ele é diferente do autólogo, o que se faz da pessoa para ela mesma; suas células são extraídas, congeladas e armazenadas enquanto ela é tratada, e depois são devolvidas ao seu sangue. Esse aí, o hospital já faz há bom tempo, são mais de 20 operações por ano. O alogênico está começando agora.
O transplante autólogo é o mais comum, mas ele é usado basicamente para doenças que não têm origem na própria medula ou quando o paciente está em “remissão”, isto é, quando a doença já diminuiu tanto, com a quimioterapia, que não é mais detectada na medula. Para os casos mais complexos, de medula comprometida, há o transplante alogênico. Esse que toda mãe aflita quer logo fazer na sua criança, para tirar da frente o risco do câncer, por todo o sempre, na pessoa que mais ama neste mundo. Mas, como quase tudo neste mesmo mundo, não é bem assim… É e não é. É, mas não para todos.
Aprendi essas coisas e outras numa conversa com a Dra. Viviane Sonaglio, líder do Centro de Referência em Tumores Pediátricos e Head da Pediatria do A.C.Camargo (que já me explicou anteriormente como ele funciona). E também com o Dr. Paulo Henrique dos Santos Klinger, que chegou este ano para coordenar os transplantes pediátricos de medula óssea no hospital. Os dois são unânimes nas respostas que dão às muitas dúvidas de mães e pais com filhos leucêmicos.
“Durante o tratamento, de acordo com a evolução da criança, pode ser que, em algum momento, a gente também identifique se ela é uma candidata a transplante. Hoje temos uma equipe que consegue adiantar esse processo. Assim que identificamos alguma candidata, em paralelo ao tratamento dela, já vamos buscando o melhor doador e identificando o melhor momento para fazer o transplante. Para não dar a essa criança mais toxicidade do que a necessária”, conclui a Dra. Viviane.
“O paciente precisa atravessar bem o tratamento e ficar bem depois dele, existe uma vida pela frente, não é? No caso das crianças, é muito, muito tempo. A gente quer que ela viva plenamente, com as suas funções cognitivas e físicas preservadas ao máximo”, confirma o Dr. Klinger
A Dra. Viviane explica detalhadamente. “Os casos de câncer em crianças e adolescentes, quando são diagnosticados precocemente e tratados em centros de referência, têm cura acima de 80% dos casos. Nessas crianças, hoje, o nosso grande objetivo é minimizar os efeitos tardios do tratamento oncológico, que vão surgir daqui a 20, 30, 40 anos. Toda criança carrega uma cicatriz desse tratamento. Alguns órgãos são mais afetados e outros menos, a depender de onde foi a doença e do procedimento necessário. A criança pode ter efeitos colaterais na parte cardíaca, renal, gastrointestinal, ósseo-muscular, cerebral e cognitiva. Efeitos hormonais também, quando ela está na fase da pré-puberdade. Há ainda um efeito colateral de longo prazo, que receamos muito, que é segunda neoplasia, um novo câncer induzido pelo tratamento oncológico. Ele é raro, mas pode acontecer. Então, se vamos ter adultos que foram tratados de câncer infantil, é preciso estar sempre atento para os efeitos de curto, médio e longo prazo do tratamento. Muitas vezes, de muito longo prazo”.
Uma outra dúvida que os familiares de pacientes sempre apresentam aos médicos é sobre o cordão umbilical, um resíduo do parto que é um riquíssimo manancial de células-tronco hematopoiéticas, produtoras das células do sangue e, por isso mesmo, muito úteis no tratamento de doenças hematológicas. “A mãe está grávida, vai ter um filho e quer saber se vale a pena coletar o cordão quando a criança nascer”, conta a Dra. Viviane. “A minha resposta a essa dúvida é bem clara”, diz o Dr. Klinger. “Se houver a intenção de fornecer o cordão a um banco público, pensando no benefício da humanidade, da ciência, pensando na terapia celular que pode ser feita com ele ou até no emprego em um transplante, eu considero válido. Mas quando, muitas vezes, as mães querem coletar para guardar, pensando que, se o filho tiver uma leucemia lá na frente, o cordão estará disponível, eu sempre questiono e desencorajo. Dificilmente o cordão será usado para essa finalidade. É importante sempre discutir o caso com o médico, para que ele defina se, naquela situação, guardar o cordão é válido”.
Aqui se coloca uma questão de mercado. Existem os bancos públicos de cordões, que estocam o material para múltiplas necessidades, sem cobrar nada do doador, mas também sem guardá-lo para uso exclusivo dele. Fica disponível para quem precisar. Mas existem também os bancos privados, onde é possível a família guardar o cordão para eventual uso futuro de seus filhos. O serviço de estocagem custa em média R$ 500 por ano. Só que, como dizem os doutores, nem sempre ele servirá para o que foi pensado. As condições clínicas do problema futuro podem não permitir que o cordão seja usado.
O que importa mais ao paciente do A.C.Camargo é saber que a criança tratada no hospital será muito bem acompanhada. “Temos um ambulatório que monitora o efeito tardio do tratamento oncológico”, diz a Dra. Viviane. “A gente chama de ‘Gepetto“, que é o grupo de estudos para efeitos tardios do tratamento oncológico, a sigla é essa. O grupo estuda a criança a partir do momento em que ela passou dos 5 anos sem câncer, quando já está sem nenhum tratamento oncológico. A gente passa a monitorar os efeitos tardios relacionados ao tratamento oncológico. Fazemos isso numa interface muito grande com a clínica médica, porque esses pacientes vão se tornar adultos e precisamos do suporte dos clínicos”.
Então, minha cara mãe, meu caro pai, relaxem. Não se afobem com transplante de medula, nem em guardar cordão umbilical. Confiem nas orientações médicas e deixem a decisão sobre isso para eles. Concentrem-se em dar todo conforto, cuidado e amor ao seu garotão, à sua gatinha, que tudo vai dar certo. Eles vão superar o câncer, vão crescer fortes e saudáveis, e o danado não haverá de atormentá-los adiante. Se rolar, eles serão adultos informados e conscientes como seus pais, saberão o que fazer. E quem procurar.
Fonte: A.C Camargo
O jovem casal recebe o diagnóstico que ninguém quer ouvir. “Sua criança tem câncer, uma leucemia”. A reação da mãe é invariável. Com o volume abundante de conteúdo de saúde que circula hoje em todas as mídias, ela se informa em dois segundos e volta a quem lhe deu a notícia. “Posso doar a minha medula?”, pergunta angustiada, cheia de esperança e com enorme expectativa. “Faço o transplante hoje mesmo, se puder!”.
A cena é comum na Pediatria do A.C.Camargo. Tão logo as famílias recorrem ao hospital para investigar se a fraqueza anormal da sua criança pode vir de um câncer no sangue, elas vão consultar também o Dr. Google e encontram uma enormidade de informações sobre o assunto. Logo surge a solução que parece infalível: o transplante de medula. Existem dois tipos dele. O de células de uma medula óssea sadia para a que está doente, chamado transplante alogênico, em mediquês castiço. Ele é diferente do autólogo, o que se faz da pessoa para ela mesma; suas células são extraídas, congeladas e armazenadas enquanto ela é tratada, e depois são devolvidas ao seu sangue. Esse aí, o hospital já faz há bom tempo, são mais de 20 operações por ano. O alogênico está começando agora.
O transplante autólogo é o mais comum, mas ele é usado basicamente para doenças que não têm origem na própria medula ou quando o paciente está em “remissão”, isto é, quando a doença já diminuiu tanto, com a quimioterapia, que não é mais detectada na medula. Para os casos mais complexos, de medula comprometida, há o transplante alogênico. Esse que toda mãe aflita quer logo fazer na sua criança, para tirar da frente o risco do câncer, por todo o sempre, na pessoa que mais ama neste mundo. Mas, como quase tudo neste mesmo mundo, não é bem assim… É e não é. É, mas não para todos.
Aprendi essas coisas e outras numa conversa com a Dra. Viviane Sonaglio, líder do Centro de Referência em Tumores Pediátricos e Head da Pediatria do A.C.Camargo (que já me explicou anteriormente como ele funciona). E também com o Dr. Paulo Henrique dos Santos Klinger, que chegou este ano para coordenar os transplantes pediátricos de medula óssea no hospital. Os dois são unânimes nas respostas que dão às muitas dúvidas de mães e pais com filhos leucêmicos.
“Durante o tratamento, de acordo com a evolução da criança, pode ser que, em algum momento, a gente também identifique se ela é uma candidata a transplante. Hoje temos uma equipe que consegue adiantar esse processo. Assim que identificamos alguma candidata, em paralelo ao tratamento dela, já vamos buscando o melhor doador e identificando o melhor momento para fazer o transplante. Para não dar a essa criança mais toxicidade do que a necessária”, conclui a Dra. Viviane.
“O paciente precisa atravessar bem o tratamento e ficar bem depois dele, existe uma vida pela frente, não é? No caso das crianças, é muito, muito tempo. A gente quer que ela viva plenamente, com as suas funções cognitivas e físicas preservadas ao máximo”, confirma o Dr. Klinger
A Dra. Viviane explica detalhadamente. “Os casos de câncer em crianças e adolescentes, quando são diagnosticados precocemente e tratados em centros de referência, têm cura acima de 80% dos casos. Nessas crianças, hoje, o nosso grande objetivo é minimizar os efeitos tardios do tratamento oncológico, que vão surgir daqui a 20, 30, 40 anos. Toda criança carrega uma cicatriz desse tratamento. Alguns órgãos são mais afetados e outros menos, a depender de onde foi a doença e do procedimento necessário. A criança pode ter efeitos colaterais na parte cardíaca, renal, gastrointestinal, ósseo-muscular, cerebral e cognitiva. Efeitos hormonais também, quando ela está na fase da pré-puberdade. Há ainda um efeito colateral de longo prazo, que receamos muito, que é segunda neoplasia, um novo câncer induzido pelo tratamento oncológico. Ele é raro, mas pode acontecer. Então, se vamos ter adultos que foram tratados de câncer infantil, é preciso estar sempre atento para os efeitos de curto, médio e longo prazo do tratamento. Muitas vezes, de muito longo prazo”.
Uma outra dúvida que os familiares de pacientes sempre apresentam aos médicos é sobre o cordão umbilical, um resíduo do parto que é um riquíssimo manancial de células-tronco hematopoiéticas, produtoras das células do sangue e, por isso mesmo, muito úteis no tratamento de doenças hematológicas. “A mãe está grávida, vai ter um filho e quer saber se vale a pena coletar o cordão quando a criança nascer”, conta a Dra. Viviane. “A minha resposta a essa dúvida é bem clara”, diz o Dr. Klinger. “Se houver a intenção de fornecer o cordão a um banco público, pensando no benefício da humanidade, da ciência, pensando na terapia celular que pode ser feita com ele ou até no emprego em um transplante, eu considero válido. Mas quando, muitas vezes, as mães querem coletar para guardar, pensando que, se o filho tiver uma leucemia lá na frente, o cordão estará disponível, eu sempre questiono e desencorajo. Dificilmente o cordão será usado para essa finalidade. É importante sempre discutir o caso com o médico, para que ele defina se, naquela situação, guardar o cordão é válido”.
Aqui se coloca uma questão de mercado. Existem os bancos públicos de cordões, que estocam o material para múltiplas necessidades, sem cobrar nada do doador, mas também sem guardá-lo para uso exclusivo dele. Fica disponível para quem precisar. Mas existem também os bancos privados, onde é possível a família guardar o cordão para eventual uso futuro de seus filhos. O serviço de estocagem custa em média R$ 500 por ano. Só que, como dizem os doutores, nem sempre ele servirá para o que foi pensado. As condições clínicas do problema futuro podem não permitir que o cordão seja usado.
O que importa mais ao paciente do A.C.Camargo é saber que a criança tratada no hospital será muito bem acompanhada. “Temos um ambulatório que monitora o efeito tardio do tratamento oncológico”, diz a Dra. Viviane. “A gente chama de ‘Gepetto“, que é o grupo de estudos para efeitos tardios do tratamento oncológico, a sigla é essa. O grupo estuda a criança a partir do momento em que ela passou dos 5 anos sem câncer, quando já está sem nenhum tratamento oncológico. A gente passa a monitorar os efeitos tardios relacionados ao tratamento oncológico. Fazemos isso numa interface muito grande com a clínica médica, porque esses pacientes vão se tornar adultos e precisamos do suporte dos clínicos”.
Então, minha cara mãe, meu caro pai, relaxem. Não se afobem com transplante de medula, nem em guardar cordão umbilical. Confiem nas orientações médicas e deixem a decisão sobre isso para eles. Concentrem-se em dar todo conforto, cuidado e amor ao seu garotão, à sua gatinha, que tudo vai dar certo. Eles vão superar o câncer, vão crescer fortes e saudáveis, e o danado não haverá de atormentá-los adiante. Se rolar, eles serão adultos informados e conscientes como seus pais, saberão o que fazer. E quem procurar.
Fonte: A.C Camargo