Especialistas debatem a importância dos cuidados paliativos
Ramiro Venâncio descobriu o câncer por acaso, em exames realizados para uma cirurgia, no início do ano passado. Nesse processo, ele precisou ser internado às pressas para realizar pela primeira vez uma quimioterapia, perdeu pouco mais de 15 quilos em algumas semanas e trocou a cama pelo sofá — se estivesse deitado, diz, “pensaria besteiras”.
— Eu achava que ia morrer, que não saberia como deixar minha família — lembra. — Nós ouvimos falar sobre como é uma doença difícil, e eu vi todos os sintomas acontecendo comigo. Parecia que estava trilhando um caminho sem volta e conversei muito com minha família sobre isso.
Apesar de ainda não estar curado, o empresário diz não sentir nada. O linfoma regrediu tanto que o médico permitiu que ele viajasse por um mês pela Europa — antes, estava proibido de passar um fim de semana no interior do estado.
— Esta experiência impactou meu comportamento. Não esquento muito com as coisas, tudo parece mais brando — descreve.
O sentimento de proximidade com a morte e o papel da medicina diante destes casos foram temas da edição deste mês do “Encontros O GLOBO Saúde e Bem-Estar”, realizada na última terça-feira na Casa do Saber. O debate contou com a presença da psicóloga e especialista em gerontologia Ligia Py, da geriatra e especialista em cuidados paliativos Claudia Burlá e mediação da jornalista do GLOBO Josy Fischberg.
Coordenador do evento, o cardiologista Claudio Domênico destaca a importância da família e do comportamento do médico na etapa final da vida de um paciente.
— Não importa se temos 30 ou 56 anos de idade, nunca vamos saber quando vamos morrer. A distância é a mesma para todo mundo — comenta. — Há diversos suportes para o fim da vida: a religião, a filosofia, os laços afetivos. E também precisamos de um médico carinhoso, que saiba escutar. Não adianta ter um profissional com conhecimento técnico se lhe falta calor humano.
REFLEXÃO SOBRE AS ÚLTIMAS RECOMENDAÇÕES
Domênico contou que recebe em seu consultório pacientes dispostos a fazer a diretiva antecipada de vontade — documento em que enumeram procedimentos que devem ou não ser realizados caso não haja possibilidade para reverter seu quadro de saúde.
— Às vezes as pessoas não falam sobre isso porque sentem vergonha, mas é importante que deixem claro: eu não quero isso ou aquilo — ressalta. — Apenas 10% das mortes são súbitas. Na grande maioria dos casos, como no câncer e na demência, o paciente tem a chance de refletir, dizer adeus e fazer suas últimas vontades.
A expectativa de vida cresceu significativamente no século passado e os avanços tecnológicos na área médica são incontestáveis, mas as doenças crônicas provocam limitações que devem ser acompanhadas até o fim da vida, para reduzir ao máximo a agonia do paciente.
Diante desta necessidade, a medicina paliativa ganha cada vez mais terreno. Trata-se de uma área interdisciplinar que foca do indivíduo, e não na doença que o aflige. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), 40 milhões de pessoas necessitam desta assistência, mas apenas 14% recebem o atendimento necessário. Em 2014, a entidade divulgou uma resolução global, apelando para que os Estados-membros da ONU investissem no acesso aos cuidados paliativos em seus sistemas de saúde. No ano seguinte, cerca de metade já havia atendido a recomendação.
EFICIÊNCIA MAIOR NO INÍCIO DA DOENÇA
A OMS alerta que a necessidade global de cuidados paliativos crescerá nas próximas décadas, seguindo o avanço de diversas doenças, principalmente crônicas, cardiovasculares e câncer, além do envelhecimento da população.
Este modo de assistência, no entanto, esbarra em diversas barreiras, como noções culturais sobre o que é a morte e como ela deve ocorrer, além da falta de informações básicas — muitas pessoas acreditam que estes cuidados só devem ser oferecidos para pacientes em suas últimas semanas de vida. Na verdade, a eficiência dos cuidados paliativos é maior se estiverem disponíveis desde o início da doença.
Outra resistência é encontrada dentro da comunidade médica, cuja formação acadêmica é direcionada para a cura. Diversos cursos de graduação em medicina ainda não têm disciplinas voltadas para este tema.
— Precisamos que os profissionais tenham a visão de que não são superpotências, e que aplicarão todos os cuidados para mitigar seu sofrimento até o fim da vida. Devem ser companheiros e oferecer sensibilidade — recomenda Ligia Py. — Devemos entender nossas próprias inquietações e inseguranças.
A psicóloga reivindica uma “revolução dos cuidados paliativos”, proporcionando uma nova assistência a casos em que a busca por unidades de tratamento intensivo não faz mais sentido.
— A morte é, foi e continuará sendo uma questão existencial. O papel da medicina é emprestar o seu aparato e arsenal terapêutico para vivermos melhor os nossos últimos momentos — ressalta. — É preciso nos reeducarmos para oferecer um contraponto ao pessimismo. Podemos trabalhar no processo de morrer, para que o ser humano seja a prioridade de nossos atos.
Para Claudia Burlá, é “inaceitável” uma pessoa padecer de dor, já que há medicamentos para combatê-la e indicações adequadas.
— O conhecimento científico já nos ensinou como controlar tanto um medicamento quanto o auxílio de profissionais de áreas como reabilitação e fisioterapia — sublinha. — Quantos segredos são revelados no leito de morte, quantas pendências são resolvidas, quantas palavras não foram ditas na vida inteira? Cabe a nós estarmos nesta cena e sermos um facilitador para a pessoa que está se despedindo da vida.
Fonte: O Globo
Ramiro Venâncio descobriu o câncer por acaso, em exames realizados para uma cirurgia, no início do ano passado. Nesse processo, ele precisou ser internado às pressas para realizar pela primeira vez uma quimioterapia, perdeu pouco mais de 15 quilos em algumas semanas e trocou a cama pelo sofá — se estivesse deitado, diz, “pensaria besteiras”.
— Eu achava que ia morrer, que não saberia como deixar minha família — lembra. — Nós ouvimos falar sobre como é uma doença difícil, e eu vi todos os sintomas acontecendo comigo. Parecia que estava trilhando um caminho sem volta e conversei muito com minha família sobre isso.
Apesar de ainda não estar curado, o empresário diz não sentir nada. O linfoma regrediu tanto que o médico permitiu que ele viajasse por um mês pela Europa — antes, estava proibido de passar um fim de semana no interior do estado.
— Esta experiência impactou meu comportamento. Não esquento muito com as coisas, tudo parece mais brando — descreve.
O sentimento de proximidade com a morte e o papel da medicina diante destes casos foram temas da edição deste mês do “Encontros O GLOBO Saúde e Bem-Estar”, realizada na última terça-feira na Casa do Saber. O debate contou com a presença da psicóloga e especialista em gerontologia Ligia Py, da geriatra e especialista em cuidados paliativos Claudia Burlá e mediação da jornalista do GLOBO Josy Fischberg.
Coordenador do evento, o cardiologista Claudio Domênico destaca a importância da família e do comportamento do médico na etapa final da vida de um paciente.
— Não importa se temos 30 ou 56 anos de idade, nunca vamos saber quando vamos morrer. A distância é a mesma para todo mundo — comenta. — Há diversos suportes para o fim da vida: a religião, a filosofia, os laços afetivos. E também precisamos de um médico carinhoso, que saiba escutar. Não adianta ter um profissional com conhecimento técnico se lhe falta calor humano.
REFLEXÃO SOBRE AS ÚLTIMAS RECOMENDAÇÕES
Domênico contou que recebe em seu consultório pacientes dispostos a fazer a diretiva antecipada de vontade — documento em que enumeram procedimentos que devem ou não ser realizados caso não haja possibilidade para reverter seu quadro de saúde.
— Às vezes as pessoas não falam sobre isso porque sentem vergonha, mas é importante que deixem claro: eu não quero isso ou aquilo — ressalta. — Apenas 10% das mortes são súbitas. Na grande maioria dos casos, como no câncer e na demência, o paciente tem a chance de refletir, dizer adeus e fazer suas últimas vontades.
A expectativa de vida cresceu significativamente no século passado e os avanços tecnológicos na área médica são incontestáveis, mas as doenças crônicas provocam limitações que devem ser acompanhadas até o fim da vida, para reduzir ao máximo a agonia do paciente.
Diante desta necessidade, a medicina paliativa ganha cada vez mais terreno. Trata-se de uma área interdisciplinar que foca do indivíduo, e não na doença que o aflige. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), 40 milhões de pessoas necessitam desta assistência, mas apenas 14% recebem o atendimento necessário. Em 2014, a entidade divulgou uma resolução global, apelando para que os Estados-membros da ONU investissem no acesso aos cuidados paliativos em seus sistemas de saúde. No ano seguinte, cerca de metade já havia atendido a recomendação.
EFICIÊNCIA MAIOR NO INÍCIO DA DOENÇA
A OMS alerta que a necessidade global de cuidados paliativos crescerá nas próximas décadas, seguindo o avanço de diversas doenças, principalmente crônicas, cardiovasculares e câncer, além do envelhecimento da população.
Este modo de assistência, no entanto, esbarra em diversas barreiras, como noções culturais sobre o que é a morte e como ela deve ocorrer, além da falta de informações básicas — muitas pessoas acreditam que estes cuidados só devem ser oferecidos para pacientes em suas últimas semanas de vida. Na verdade, a eficiência dos cuidados paliativos é maior se estiverem disponíveis desde o início da doença.
Outra resistência é encontrada dentro da comunidade médica, cuja formação acadêmica é direcionada para a cura. Diversos cursos de graduação em medicina ainda não têm disciplinas voltadas para este tema.
— Precisamos que os profissionais tenham a visão de que não são superpotências, e que aplicarão todos os cuidados para mitigar seu sofrimento até o fim da vida. Devem ser companheiros e oferecer sensibilidade — recomenda Ligia Py. — Devemos entender nossas próprias inquietações e inseguranças.
A psicóloga reivindica uma “revolução dos cuidados paliativos”, proporcionando uma nova assistência a casos em que a busca por unidades de tratamento intensivo não faz mais sentido.
— A morte é, foi e continuará sendo uma questão existencial. O papel da medicina é emprestar o seu aparato e arsenal terapêutico para vivermos melhor os nossos últimos momentos — ressalta. — É preciso nos reeducarmos para oferecer um contraponto ao pessimismo. Podemos trabalhar no processo de morrer, para que o ser humano seja a prioridade de nossos atos.
Para Claudia Burlá, é “inaceitável” uma pessoa padecer de dor, já que há medicamentos para combatê-la e indicações adequadas.
— O conhecimento científico já nos ensinou como controlar tanto um medicamento quanto o auxílio de profissionais de áreas como reabilitação e fisioterapia — sublinha. — Quantos segredos são revelados no leito de morte, quantas pendências são resolvidas, quantas palavras não foram ditas na vida inteira? Cabe a nós estarmos nesta cena e sermos um facilitador para a pessoa que está se despedindo da vida.
Fonte: O Globo