O mundo do trabalho é um desafio para o oncológico

O mundo do trabalho é um desafio para o oncológico

Leio no portal do hospital, sempre carregado de notícias e conteúdos importantes, que o A.C.Camargo fechou uma parceria com o Projeto Abre Portas, do Instituto Quimioterapia & Beleza, uma iniciativa que, desde 2022, conecta pacientes oncológicos em busca de emprego com empresas que têm vagas abertas. Vagas e mentalidade, eu amplio, porque sem empregadores de mente bem aberta, livre de preconceitos, reduz-se muito o espaço para oncos no mercado. Não é mole provar ao mundo que a doença não incapacita ninguém, exceto em casos mais graves, quando o paciente não está à procura de trabalho.

Vamos combinar que é compreensível o receio das empresas. Elas querem produtividade de seus empregados e isso exige a disponibilidade deles, com a expectativa de que a sua saúde não vai impedi-la. E aí reside o X, o Y e o Z da questão. O onco tem que provar que, embora tenha uma doença de percurso longo, da detecção ao fim do seguimento, ele tem energia física e mental para trabalhar. O câncer não ataca todos os cérebros, nem todos os nervos, nem compromete a mobilidade de todos, como os obtusos podem imaginar. A missão é demonstrar isso.

O primeiro desafio a vencer é o da aparência. Todos sabemos quanto preconceito ainda envolve isso, no mundo do trabalho. Apenas agora, aos poucos, vai mudando a ideia de que “boa aparência” é ter a pele branca, sem tatuagem e vestida com trajes formais. Ou de que o cabelo crespo deve ser curto, quando não alisado. A diversidade étnica e cultural já é mais aceita, mas a variedade de tipos humanos nas empresas ainda não inclui os portadores de deficiências físicas, por exemplo. Os idosos. Os transexuais. E por aí vai.

Mas o coração sente o que os olhos veem e, nos processos de seleção, o olhar do contratante pode enxergar incapacidade na mulher com um lenço lhe cobrindo a cabeça. Ou na pele acinzentada de qualquer um sob quimioterapia. Ou nas marcas físicas evidentes, quando não a desfiguração, dos pacientes de cabeça e pescoço. E por aí vem a discriminação aos “oncológicos explícitos”, aqueles que o tratamento ou as sequelas deixam evidentes. Aí é duro mostrar que aparência e competência têm a mesma terminação, mas uma não acaba com a outra. Até porque todo processo seletivo é rápido e impessoal, não é uma convivência, um compartilhamento profissional que cria laços e conhecimento.

Gabriel Priolli

Outro desafio a vencer é a gestão do tempo. O oncológico, sobretudo em tratamento, terá de enfrentar muitas consultas, exames e terapias. Vai gastar horas e horas nisso, sem a menor possibilidade de planejar esse tempo, porque é a dinâmica do tratamento que impõe os procedimentos e o timing deles. Então, procurar emprego e depois trabalhar terão de ser divididos com a atividade de se tratar. A pessoa terá de se desdobrar para dar conta das atribuições, em meio a tantas atribulações. No trabalho remoto dos tempos de pandemia, isso era mais fácil, mas agora a moleza está acabando e o desafio dobrou.

Finalmente, tem o desafio da própria cabeça. De mentalizar que, apesar da doença grave e do tratamento severo, cheio de exigências, é preciso tocar a vida com a máxima normalidade possível. O que começa, claro, por prover a existência e, salvo no caso dos filhinhos de papai, dos bandidos e dos corruptos, isso se faz com trabalho. O oncológico precisa acreditar que dá conta de trabalhar. Que será desafiador, será cansativo, será penoso, mas será possível. Sem obstinação na cabeça e firmeza para nadar na correnteza adversa, não se atravessa o mar das dificuldades.

Por tudo isso que representa de desafio, para o paciente oncológico e também para o seu empregador, louvemos o Projeto Abre Portas. Louvemos a parceria do A.C.Camargo com ele e louvemos as empresas que são capazes de pôr a humanidade acima dos interesses. O lucro é mais amplo e mais justo quando o mercado opera assim. E o oncológico é mais feliz, quando pode viver como um trabalhador igual a qualquer outro.

Sobre o autor

Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.

Fonte: A.C Camargo

Leio no portal do hospital, sempre carregado de notícias e conteúdos importantes, que o A.C.Camargo fechou uma parceria com o Projeto Abre Portas, do Instituto Quimioterapia & Beleza, uma iniciativa que, desde 2022, conecta pacientes oncológicos em busca de emprego com empresas que têm vagas abertas. Vagas e mentalidade, eu amplio, porque sem empregadores de mente bem aberta, livre de preconceitos, reduz-se muito o espaço para oncos no mercado. Não é mole provar ao mundo que a doença não incapacita ninguém, exceto em casos mais graves, quando o paciente não está à procura de trabalho.

Vamos combinar que é compreensível o receio das empresas. Elas querem produtividade de seus empregados e isso exige a disponibilidade deles, com a expectativa de que a sua saúde não vai impedi-la. E aí reside o X, o Y e o Z da questão. O onco tem que provar que, embora tenha uma doença de percurso longo, da detecção ao fim do seguimento, ele tem energia física e mental para trabalhar. O câncer não ataca todos os cérebros, nem todos os nervos, nem compromete a mobilidade de todos, como os obtusos podem imaginar. A missão é demonstrar isso.

O primeiro desafio a vencer é o da aparência. Todos sabemos quanto preconceito ainda envolve isso, no mundo do trabalho. Apenas agora, aos poucos, vai mudando a ideia de que “boa aparência” é ter a pele branca, sem tatuagem e vestida com trajes formais. Ou de que o cabelo crespo deve ser curto, quando não alisado. A diversidade étnica e cultural já é mais aceita, mas a variedade de tipos humanos nas empresas ainda não inclui os portadores de deficiências físicas, por exemplo. Os idosos. Os transexuais. E por aí vai.

Mas o coração sente o que os olhos veem e, nos processos de seleção, o olhar do contratante pode enxergar incapacidade na mulher com um lenço lhe cobrindo a cabeça. Ou na pele acinzentada de qualquer um sob quimioterapia. Ou nas marcas físicas evidentes, quando não a desfiguração, dos pacientes de cabeça e pescoço. E por aí vem a discriminação aos “oncológicos explícitos”, aqueles que o tratamento ou as sequelas deixam evidentes. Aí é duro mostrar que aparência e competência têm a mesma terminação, mas uma não acaba com a outra. Até porque todo processo seletivo é rápido e impessoal, não é uma convivência, um compartilhamento profissional que cria laços e conhecimento.

Gabriel Priolli

Outro desafio a vencer é a gestão do tempo. O oncológico, sobretudo em tratamento, terá de enfrentar muitas consultas, exames e terapias. Vai gastar horas e horas nisso, sem a menor possibilidade de planejar esse tempo, porque é a dinâmica do tratamento que impõe os procedimentos e o timing deles. Então, procurar emprego e depois trabalhar terão de ser divididos com a atividade de se tratar. A pessoa terá de se desdobrar para dar conta das atribuições, em meio a tantas atribulações. No trabalho remoto dos tempos de pandemia, isso era mais fácil, mas agora a moleza está acabando e o desafio dobrou.

Finalmente, tem o desafio da própria cabeça. De mentalizar que, apesar da doença grave e do tratamento severo, cheio de exigências, é preciso tocar a vida com a máxima normalidade possível. O que começa, claro, por prover a existência e, salvo no caso dos filhinhos de papai, dos bandidos e dos corruptos, isso se faz com trabalho. O oncológico precisa acreditar que dá conta de trabalhar. Que será desafiador, será cansativo, será penoso, mas será possível. Sem obstinação na cabeça e firmeza para nadar na correnteza adversa, não se atravessa o mar das dificuldades.

Por tudo isso que representa de desafio, para o paciente oncológico e também para o seu empregador, louvemos o Projeto Abre Portas. Louvemos a parceria do A.C.Camargo com ele e louvemos as empresas que são capazes de pôr a humanidade acima dos interesses. O lucro é mais amplo e mais justo quando o mercado opera assim. E o oncológico é mais feliz, quando pode viver como um trabalhador igual a qualquer outro.

Sobre o autor

Gabriel Priolli é jornalista radicado em São Paulo. Trabalhou nos principais veículos de imprensa do país, dirigiu e criou canais de televisão, e foi professor na PUC, FAAP e FIAM. Hoje atua como consultor de comunicação.

Fonte: A.C Camargo